Bem-vindes ao Novo Normal

Reprodução: European Centre for Medium-Range Weather Forecasts

Durante o arrefecimento da pandemia de COVID-19, muito se falou sobre um Novo Normal, referindo-se às alterações comportamentais e sistêmicas que poderiam decorrer do aprendizado coletivo resultante da crise planetária.

Navegando em ondas de esperança, culpa e oportunismo, a promessa era de revisão de padrões sociais como apertos de mão e beijos no rosto, o uso de máscaras quando se está doente, bem como mudanças na forma de habitar o planeta.

Reduzir a exploração de recursos em ambientes intocados para evitar o transbordamento de vírus entre espécies, redistribuir o espaço viário para modos menos nocivos que o automóvel e racionalizar os deslocamentos em viagens internacionais eram algumas das expectativas sistêmicas.

Mas o capitalismo tem a grande habilidade de fagocitar as críticas (e os críticos) para continuar gerando lucro através da exploração infinita.

Aqui no Grande Sul Global, exceto pela manutenção dos detestáveis cardápios digitais, pelo aumento astronômico dos preços de passagens aéreas e pela consolidação do moedor de carne do delivery como forma de consumo prioritária das classes dominantes, pouco mudou.

E parece que 2023 marca a chegada do verdadeiro Novo Normal ao Brasil, após uma turnê inesquecível no verão do hemisfério Norte em 2022. Depois de ciclones, tempestades fora de época ou de escala, deslizamentos de encostas (com casas em cima) e “gangorras térmicas” com variação de 15 graus no mesmo dia, chegamos à Onda de Calor Excepcional.

Não é nem primavera, mas as temperaturas podem chegar a 40 graus esta semana. E a umidade do ar beirando os 10%. Condições extremas para a vida, em especial de crianças e idosos.


Durante a pandemia li Deus das Avencas, de Daniel Galera. Em uma das três novelas do livro (Bugônia), o autor descreve uma sociedade pós-apocalíptica em que o ambiente externo se tornou tão inóspito que a população utilizava trajes com filtros de ar e calor para sair de casa. Quer dizer, nem todas as pessoas: uma parte da população morava fora das “muralhas”, mas esse era um local “proibido e perigoso”.

Muito se fala que a ficção científica atual não avança sequer uma década no tempo cronológico ao imaginar o futuro. A distopia é agora, não dá pra imaginar além. Controle de populações através da tecnologia e das linguagens, migrações em massa, digitalização de sentimentos e catástrofes naturais foram descritas pela ficção desde a primeira metade do século XX e parecem ganhar apenas um detalhamento nas obras contemporâneas.

Reprodução: Invisible Demons / Raul Jain

O filme indiano Invisible Demons aproxima um pouco a ficção da realidade e joga um olhar interessante sobre a existência de diversos mundos em um só planeta em crise. Trata-se de um documentário sobre a poluição do ar, dos rios e do lixo em Nova Delhi, mas também uma inspiração para o entendimento do capitalismo climático.

O filme começa com um indiano das classes altas, que diz nunca ter vivido fora de ambientes com ar condicionado e filtros de ar. De casa à escola, escritório, restaurantes e lojas, tudo filtrado e climatizado, inclsuive o carro que o leva a todos estes lugares.

Em outras cenas, crianças de 4 anos de idade pedem um trocado e moram embaixo de viadutos nos locais mais poluídos da cidade. Outros sobrevivem com o que encontram nas montanhas de lixo produzidas diariamente. Como pano de fundo, autoridades e mídia tratam o fenômeno da poluição atmosférica como algo que mistura acaso e auto-ajuda fatalista: “está ruim hoje porque tal massa de ar chegou ao ponto tal e impediu a disperssão dos poluentes. Protejam-se!”.


É balela dizer que pandemias e a emergência climática são “democráticos”, que “todos serão afetados”. Vide a distribuição desigual de vacinas a geopolítica das patentes (para onde vão os lucros destas vacinas). Ou então basta observar as formas de proteção que as diferentes classes sociais nos diferentes países podem desfrutar durante ondas de calor, tempestades e outros eventos climáticos extremos.

Este ano choveu bastante no inverno do Sudeste brasileiro, então pelo menos temos água. Agora imagina se no ano que vem o inverno é seco e a onda de calor bate ainda mais forte. E se daqui a dois anos o cenário se repete, já com a Sabesp privatizada como quer o governador de São Paulo? Quais classes sociais poderão encher piscinas e quem vai enfrentar o calor sem água potável? É um cenário mais provável do que improvável.

Aliás, o projeto dos grandes canalhas que dão as cartas no sistema atual é criar bunkers cada vez mais protegidos para viverem, enquanto o lado de fora das muralhas se esfacela. Isso vai desde os foguetes-piroca do Elon Musk à compra de terras e imóveis nos locais mais protegidos, passando pelas barreiras migratórias cada vez mais ferrenhas.

Enquanto o mundo acaba para a maior parte da população, a roda do capital segue girando e as ilhas de bem-estar vão se fortificando. 99% da população fora, 1% dentro. Sobre esse tópico, vai a dica de outro filme: O Expresso do Amanhã (do mesmo diretor de Parasita), que tem um final tão redentor quanto o de Bacurau.

No Brasil, a esquizofrenia entre o desenvolvimentismo e a preservação ambiental explicita contradições no governo federal. Mesmo com pareceres contrários do Ibama, órgão responsável pelo licenciamento ambiental, setores importantes do governo e o próprio presidente seguem passando pano para a abertura de novos poços de petróleo na chamada Margem Equatorial, que inclui a foz do rio Amazonas e vai até o Rio Grande do Norte.

Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes bota todas as suas fichas e R$ 2,8 bilhões do orçamento no recapeamento de vias como grande vitrine para sua reeleição. Asfalto para carros em uma cidade que deveria estar construindo praças e parques, fortalecendo radicalmente o transporte público e os modos ativos, cuidando das nascentes de água e plantando árvores, além de cuidar de todas as outras necessidades básicas da população.

Redução de emissões de carbono no transporte / Reprodução: Burning man, Mihael Milunovic

Imperativo neste momento seria repensar radicalmente a nossa forma de vida em coletivo e como “usamos” o planeta, e não continuar insistindo que a tecnocracia financeira vai resolver o que ela mesma criou, utilizando as mesmas ferramentas que nos trouxeram até aqui. Do jeito que a coisa caminha, o Novo perto de Normal é apenas o selo no rótulo do requeijão, dá até pra adicionar um “mais cremoso”.

Substituir carros a combustão por carros elétricos, por exemplo, em nada resolve o caos urbano e as condições precárias de acesso da população à cidade. Isso sem falar na necessidade de mobilização astronômica de recursos naturais e financeiros para que essa transição seja realizada em escala planetária, algo absolutamente fantasioso (ou melhor, ideológico).

Além disso, acreditar que a periferia do sistema tem capacidade de realizar a “transição verde” na mesma escala e velocidade que os países centrais sem mudar o caminho é cair novamente no falso-paradigma de que o desenvolvimento acontece de forma linear, apenas em tempos diferentes nos diversos países.

Gustavo Petro, presidente da Colômbia, foi na mosca recentemente: “transição verde é o negacionismo da esquerda”. Transformar a natureza em commoditie no mercado de carbono ou substituir a fonte de energia dos carros sem mudar os padrões de consumo e uso dos recursos é mais uma armadilha do capital para continuar a exploração. Talvez seja a última antes do esgarçamento definitivo do que um dia pretensiosamente se chamou de civilização.

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