Wong Kar-wai encontra Cyndi Lauper (part. Éric Rohmer e Joachim Trier)

Fallen Angels, Wong Kar-wai / reprodução

Um dos aspectos difíceis de envelhecer tem sido lidar com as memórias e com o passado. A linha tênue entre nostalgia e saudosismo anda embaralhada. As angústias do hoje têm se somado às preocupações com o amanhã e temperadas com o agridoce do ontem. Passar pela crise da meia-idade tem sido um tanto penoso.

A minha geração, que foi criança nos anos 80, cresceu nos 90 e viveu a juventude nos anos 2000, ganhou o apelido de ‘xennial’. Nascemos em um mundo analógico, que vertiginosamente se tornou digital. Além disso, crescemos em um mundo cheio de sonhos e utopias para envelhecer descendo em alta velocidade a ladeira da distopia.

Por um lado, empunhamos alguma potência redentora, representada no cinema pelos habitantes de Zion, em Matrix. Por outro, carregamos alguns fardos a mais nessa travessia da juventude à velhice.

Talvez sejamos uma das raras gerações na história humana cujos filhos têm uma perspectiva quase certa de viver em um mundo muito pior do que o dos pais. Emergência climática, devastação ambiental, distopia tecnológica e cognitiva, fratura o sistema político e colapso da ordem econômica dão a sensação de que vimos o último ponto alto da espécie antes de começar a descida.

No excelente A pior pessoa do mundo, de Joachim Trier, o personagem ‘xennial’ Aksel, internado com um câncer que evoluiu de maneira fulminante, encontra sua ex-namorada Julie. Em um papo no jardim do hospital ele fala um pouco mais sobre a meia-idade desta geração:

Cresci numa época sem internet e telefones celulares. Eu pareço um velhote, mas penso muito nisso. Que o mundo que eu conhecia desapareceu. Pra mim tudo se resumia em ir às lojas. Lojas de discos. Pegava o bonde para a Voices em Grünerløkka. Para folhear quadrinhos usados na Pretty Price. Posso fechar os olhos e ver os corredores da Video Nova em Majorstua.

Cresci em uma época em que a cultura era transmitida através dos objetos. Eles eram interessantes porque nós podíamos viver entre eles. Nós podíamos pegá-los, segurá-los em nossas mãos, compará-los.

(…)

Isso é tudo o que tenho. Passei minha vida fazendo isso. Colecionando todas essas coisas, quadrinhos, livros… E eu apenas continuei, mesmo quando isso parou de me dar as poderosas emoções. que sentia no início dos meus 20 anos. E agora é tudo que me resta. Conhecimento e memórias de coisas estúpidas e fúteis que ninguém dá a mínima.

***

Na sexta-feira de manhã fui ao Instituto Chão fazer a compra da semana. O Chão é um lugar fantástico em São Paulo, tocado por um punhado de ‘xennials’ (e alguns ‘millenials’), e isso faz com que a música de supermercado por lá seja sempre muito boa.

Entre chuchus, maçãs e beterrabas, começou a tocar uma música bastante familiar, mas que eu de pronto não lembrei. Aproveitei que o mundo digital eliminou algumas inquietações da memória e resolve rapidamente qualquer dúvida. Saquei o celular, abri o Shazam e pronto: Cyndi Lauper, All Through The Night, de 1983. Disco de estreia dela, o mesmo que tem Girls Just Wanna Have Fun e Time After Time. Dois anos antes da trilha do clássico Goonies.

Todas as referências do parágrafo anterior em geral estão guardadas num lugar muito privilegiado da memória de uma boa parte dos ‘xennials’ ocidentais e urbanos. Reservei o ingrediente sem saber que ia ser útil mais tarde.

De noite resolvi assistir Anjos Caídos, do Wong Kar-wai. Já tive altos e baixos com os filmes dele. Vi 2046 no cinema e foi muito impactante; mas não fui fisgado por Chungking Express nem por In The Mood for Love.

Anjos Caídos é um filme sobre a noite. E é um baita filme sobre a noite. Wong Kar-wai é um criador de atmosferas, não é um contador de histórias, então pouco adianta qualquer sinopse. É preciso ver.

O filme é de 1995 e se passa em Hong Kong. Mas a cena final me jogou direto em muitas madrugadas dos meus 20 ou 30 anos em São Paulo. Não tanto pelas histórias, mas pela atmosfera, pelas sensações, pelas cores.

Eu sempre adorei a noite. Muito mais do que o dia. Da segunda metade dos 90, me lembro das madrugadas durante a semana andando de carro pela cidade vazia. Nos 2000, a mesma cidade (já não tão vazia) me trouxe grandes epopéias de bicicleta. Recheando os deslocamentos (ou o contrário), muitas histórias, sensações, conversas, amores, frustrações, exageros e alegrias.

Das Aventuras de Reinette e Mirabelle (Éric Rohmer), também visto nos anos 90 no TopCine (cinema da Paulista que estava falindo e exibia permanentemente clássicos franceses e italianos), me lembro da hora azul: um minuto mágico antes do amanhecer, que acontece poucas vezes ao ano, quando os pássaros do dia ainda não acordaram e os da noite já foram dormir. O único silêncio absoluto. Wong Kar-wai deve ter visto Eric Rohmer.

Anjos Caídos termina com uma cena arrebatadoramente linda. São 20 segundos que me trouxeram a sensação de todas as madrugadas vividas e imaginadas.

A música avançava pelos créditos, reverberando o impacto do filme por mais alguns minutos. Também pelo Shazam, descobri que se chamava Only You (The Flying Pickets). Botei pra tocar no som e me levantei do sofá.

Era começo de madrugada. No dia seguinte iria buscar meu filho na casa da mãe para começar a minha metade das férias escolares com ele. Com criança pequena em casa, as madrugadas são bem raras.

Resolvi escutar de novo a música da Cyndi Lauper que tinha descoberto pela manhã. A atmosfera combinava muito com o filme, mas não tinha reparado no título nem na letra: All through the night…. Vou de uma música pra outra algumas vezes antes de ir deitar.

***

Termino esse texto duas noites depois de começar. Sinto que podia ter ficado bem melhor, mas já é tarde para quem tem filho pequeno em casa. Além disso, como diz a citação de Annie Ernaux no texto que abre esse blog, quero escrever as coisas para que elas tenham o seu termo e não tenho muitos dias nem madrugadas nas próximas semanas para ir muito além do que já foi escrito.

Meu filho tem quase 5 anos e ainda não consegue ler esse texto. Também não conversei com ele sobre os filmes de Wong Kar-wai nem sobre a geração ‘xennial’, mas ele escutou algumas vezes Cyndi Lauper nos últimos dias.

No jantar de hoje ele repetiu um pedido que já fez algumas vezes: “papai, posso ficar acordado até de manhã?”. O objetivo era adiar a hora de dormir hoje, mas prometi que faremos isso em outro dia das férias. Só agora, tentando achar um final para esse texto, percebi a relevância do pedido. Quem sabe daqui alguns anos conseguiremos chegar perto da hora azul…

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