(re)começo

Se não escrevo as coisas,
elas não encontram seu termo
são apenas vividas.

(Annie Ernaux, O Jovem)

Fiz 40 anos pouco depois de descobrir Annie Ernaux. Era 2019 e fiquei deslumbrado com Os Anos. A história da França no século XX a partir de fotografias pessoais e lembranças da autora. O afeto das palavras, a memória como linha condutora, a concisão da escrita, a sensação em retrospectiva de ter feito parte de acontecimentos históricos muitas vezes apenas por estar vivo no mesmo tempo, tudo tocou muito fundo.

Um ano antes, em 2018, estava com 39 anos e tive um filho, provavelmente uma das viradas mais importantes de qualquer vida. No meu caso, o ano de nascimento dele também marcou uma virada fundamental na história brasileira. Meu filho nasceu pouco antes do primeiro turno das eleições presidenciais. A bolsa estourou quando nos preparávamos para assistir ao primeiro horário eleitoral, que havíamos colocado para gravar mais cedo naquela noite. Tínahmos bastante medo do que poderia acontecer com o Brasil se o facismo triunfasse nas urnas. E triunfou. Daquele buraco ainda não saímos.

Colocar uma vida no mundo ao mesmo tempo em que a morte triunfava coletivamente foi bastante estranho, para dizer o mínimo. Hoje penso que teria sido muito mais difícil suportar a realidade de destruição generalizada sem um encanto particular dentro de casa. A força de uma nova vida serviu como antídoto para o veneno que saía do ovo da serpente.

No final daquele mesmo ano encerrei um ciclo de trabalho e botei um ponto-e-vírgula numa trajetória de militância que tomou boa parte da minha vida adulta, que mobilizou minha escrita, meu corpo, meus afetos e minhas relações. Minha luta partiu do incômodo, da reflexão e do movimento. Contra a centralidade do automóvel nas políticas públicas e no imaginário. Por cidades mais justas e melhores. Por novas formas de vida e ocupação do espaço que habitamos na Terra.

Depois do movimento estudantil universitário, que passou pelas lutas anti-globalização no início dos 2000, descobri a chamada “questão urbana” e me engajei. Meu trabalho de conclusão do curso de jornalismo em 2004 foi um vídeo chamado Sociedade do Automóvel. Guy Debord encontrando Ivan Ilich e André Gorz. O isolamento, o tédio, a agressividade e a degradação do tecido social como elementos explícitos do capitalismo tardio. A necropolítica sobre quatro rodas e um motor.

Em 2005, já formado em uma profissão que parecia extinta – o jornalismo – resolvi montar um blog, o Apocalipse Motorizado, encerrado em 2011. Publicar textos e fotos ali era uma motivação cotidiana para pensar e agir no mundo. Foi um trabalho importante, aglutinador e potencializador de uma transformação urbana incipiente no começo da década de 10. Não tinha nenhuma intenção específica, mas o caminho era escrever em movimento.

Curiosamente (Freud deve explicar), o primeiro texto que publiquei em março de 2005 foi o diálogo entre um pai e um filho num futuro distante. Uma alegoria sobre a insanidade de acreditarmos que máquinas de 2 toneladas podem ser usadas amplamente para mover pessoas de 70 quilos.

O futuro da obsolescência do automóvel ainda não chegou, meu filho ainda tem 4 anos. O capitalismo é bastante hábil em fagocitar críticas, botar uma maquiagem e criar novos produtos semelhantes aos anteriores. Hoje acreditamos que essas mesmas máquinas podem ser “verdes” se não forem movidas a combustível fóssil. Os efeitos de isolamento, as mortes em “acidentes”, a degradação do tecido social e urbano ainda não são tratados (nem muitas vezes percebidos). A ideologia é implacável. O carro continua reinando. As cidades, cada vez mais destruídas.

Além de carros e motos (o subproduto do automóvel), contamos com outra praga: os celulares e suas redes anti-sociais, capazes de potencializar a atomização dos indivíduos, a depressão, a ansiedade e tantas outras doenças psíquicas dos nossos tempos.

A captura da comunicação, da cultura, da sociabilidade e da política pelo algoritmo tecno-capitalista dos bilionários foi implacável na década de 10. Nascido no mundo analógico, entusiasta da tecnologia na juventude, comecei a sentir um mal estar ainda antes de 2013. Zizek e a tinta vermelha. A vida entrou em um liquidificador na potência máxima na virada dos anos 20.

A Era Bolsonaro I teve ainda uma pandemia. Entre 2020 e 2022, me recolhi. Com filho pequeno, meu aprendizado foi sobre o cuidado. Fazer comida, limpar a casa, cuidar de filho… O tal trabalho reprodutivo foi o meu mergulho. Um grande aprendizado e mais um punhado de reflexões sobre caminhos (im)possíveis.

Um carrinho de bebê azul na calçada, carros estacionados bloqueando a passagem

Em São Paulo, sair de casa (como diz a música) já é se aventurar. As aventuras com filho pequeno nas calçadas indignas, nos semáforos cretinos e em uma cidade privatista, que degrada e passa por cima de tudo que é público, me trouxeram mais um punhado de angústias. Desta vez, sem o movimento da escrita e da ação.

A vertigem dos anos 20 esfacelou o que notava como incipiente nos anos 10: uma certa volta do olhar ao coletivo e alguma perspectiva de um futuro melhor. A catástrofe urbana, política e ecológica está cada vez mais nítida, mas ainda seguimos sob o véu do “desenvolvimento”, da democracia liberal, do crescimento do PIB e dos carros populares. E os SUVs, cada vez maiores e com seus vidros cada vez mais pretos, seguem duelando com as motos do precariado do delivery, ambos aterrorizando pedestres e ciclistas, transformando todo o espaço em espaço de guerra.

Fazia tempo que queria voltar a escrever. Faz tempo que tento escrever. No final do ano passado, me dei conta da década 2013-2023 e de quantas mudanças haviam acontecido na minha vida e na vida coletiva. Não sou o único. Neste (ainda) mês de junho de 2023, se multiplicam reflexões, publicações e debates sobre as jornadas de junho, a ascensão do fascismo, a derrocada da democracia liberal, a última (?) volta do parafuso do capitalismo terminal. Volto a elas em breve.

Por hora, está no mundo esse blog. Assim como o primeiro, sem intenção específica, apenas me motivar a pensar e agir no mundo. Os temas serão mais diversos, a periodicidade é indefinida, os acertos técnicos e estéticos vem aos poucos. O caminho se faz caminhando.

Divagar: 1. caminhar sem rumo, andejar, vagar, vaguear; 2. percorrer, correr; 3. desviar-se do assunto principal, fazer digressão; 4. falar coisas sem nexo; 5. fugir do assunto, desconversar; 6. soltar o pensamento, devanear, sonhar.

(mas pode ser devagar também)

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This Post Has 5 Comments

  1. Roberson

    Amigo, Thiago Benicchio como fazia falta sua escrita.

    Que bom ler voce de novo, ler sobre essa mente inquieta que tenho como amigo na vida, que em momentos importantes de vida e da história do país pude compartihar lagrimas de alegria e tristeza, mas seguimos em frente.

  2. Asuncion

    Amei de reencontrar aqui neste texto. Também tive perdas , e alegrias com o nascimento da minha neta apenas 1 ano mais nova teu filho. Também continuo indignada com os rumos da cidade que pode piorar ainda mais com o Plano Diretor. Feliz de te ter de volta

    1. Thiago

      Que delícia te ver por aqui Asuncion! Parabéns pela neta, é um alento! Estou tentando juntar pensamentos pra escrever algo sobre o Plano Diretor, tá dureza mesmo.

  3. Vcalvento

    Beniiiiii, que feliz poder voltar a contar com suas reflexões, importantes e urgentes. Bjo grande amigo! 😉

    1. Thiago Benicchio

      Igualmente bom te ver por aqui. Saudades de você! E o Bicicleta Girassol, como anda?

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